Conversando sobre Arte no ARTARTE: entrevistada Rosana Mendes Campos
Quem é Rosana Mendes Campos?
Nasci em uma madrugada de abril em Belo Horizonte. Minha mãe, que se dedicava aos filhos e à casa, me legou o senso estético. O meu pai era médico, professor da UFMG.
Cresci numa Belo Horizonte bem provinciana e paradoxalmente com horizontes limitados. Minha casa, no entanto, era grande com enorme quintal onde havia um pomar prolífico em todos os tipos de frutas e povoado por cachorros, e muita festa e música. Uma infância feliz que era pontuada por viagens ao Rio de Janeiro nas férias, onde entrava em contato com uma cultura mais aberta e um povo que sabia se divertir sem culpa.
Por sorte, nasci numa família apaixonada pela literatura, e assim, ela fez parte da minha vida desde muito cedo. Devo à leitura quase toda a minha formação, desde que estudei no Colégio Sagrado Coração de Jesus, um colégio só para moças, regido por freiras alemãs altamente repressoras e castradoras que nos mantinham sob disciplina quase militar e cuja política de ensino me deixava totalmente sem estímulo. O objetivo era educar as futuras mães de família, sem nenhum desafio maior. Não tínhamos aulas de artes, apenas de artes aplicadas. Nem mesmo a história da arte nos era ensinada. As ciências eram consideradas obsoletas em se tratando da formação de mulheres, portanto não constavam da grade curricular.
Quando você começou a se interessar pela arte?
Costumo dizer que foi a tinta e o pincel que me escolheram. Havia um clima propício para a literatura na minha família, sendo que meu avô paterno e um tio eram poetas e escritores. A biblioteca do meu pai contava com aproximadamente 2500 edições, mas a de meu avô possuía pelo menos duas vezes mais livros. Não havia incentivo às artes plásticas, porém, a não ser pelo fato de que minha mãe possuía talento, vislumbrado através dos seus bordados e alguns ocasionais rabiscos de brincadeira. Lembro-me de gostar de brincar com sua caixa de linhas de bordar, agrupando os carretéis fazendo diversas combinações. Encantavam-me as cores. A primeira vez que me deram tinta e pincel foi no jardim da infância. Recordo-me que experimentei um grande prazer com um pincel na mão e todas aquelas cores e a textura da tinta. Logo chamaram a minha mãe à escola e prognosticaram que eu seria pintora. Mas ela não levou a sério. Foram muito raras as minhas chances de pintar senão por aquelas incursões na pré-escola. Nas conversas em casa predominava a literatura como tema. Pouco ou quase nada ouvi falar dos pintores clássicos ou modernos. Mesmo assim, aos dezessete anos entrei para a Escola de Belas Artes da UFMG, com um desejo muito grande de aprender a pintar, pois aquela sensação que experimentei quando criança ficou impressa em mim. Era diferente do prazer em desenhar. Com o lápis, sempre achei mais natural desembestar pela escrita.
Qual foi sua formação artística?
Na Escola de Belas Artes da UFMG tive a sorte de ser aluna e estar em contato com um grupo de peso nas artes de Minas Gerais e do Brasil como Amílcar de Castro, Álvaro Apocalipse, Marisa Trancoso, Haroldo Mattos, Jarbas Juarez, Iara Tupinambá, Inimá de Paula, e outros. Na época, apesar da escola ser mais acadêmica e convencional, o departamento de pintura já estava sendo preterido por outros que angariavam a maioria dos alunos e apontavam novos caminhos para a arte. Dei chance a outras técnicas, mas o gozo da pintura prevaleceu. O deslizar do pincel languidamente sobre a superfície da tela, ou alternadamente de aplicar pinceladas fortes, rápidas e frenéticas me fascinam. Porém, talvez pelo próprio novo rumo que a arte tomava, o curso de pintura, no cômputo geral, me desapontava. Até que entrou para o departamento a Mariza Trancoso recém chegada da Bélgica onde havia ido estudar. Ela era essencialmente pintora, apaixonadamente pintora, e conseguiu reverter o marasmo que o departamento enfrentava, infundindo nos poucos alunos da época o amor e o entusiasmo pela pintura. Meu contato com a Mariza Trancoso na EBA foi breve, pois ela chegou quando eu estava no meu último ano de faculdade. Mesmo assim, o seu pensamento, a sua força e energia iriam me influenciar muito.
Graduei-me em pintura em dezembro de 1976. A arte, porém, muito ciumenta, não admitia dividir com a minha condição de mãe e esposa. Ou se é artista em tempo integral ou não. Assim, não hesitei em escolher sem arrependimentos o cuidado dos filhos.
Anos mais tarde, por pura necessidade de prover pelos filhos, decorrente de um divórcio, retornei à UFMG para um mestrado em literatura inglesa e tornei-me professora universitária, acomodando a arte em minha vida. Comprovei, no entanto, a dificuldade de se manter uma posição, pois não havia uma demanda de professores nesta área.
Somente quando meu segundo esposo veio a falecer subitamente é que num momento de epifania, eu me dei conta de que havia abdicado totalmente do sonho de me tornar pintora. Daí, joguei tudo para cima e recomecei a pintar em casa, por conta própria, experimentando, comprando livros, estudando, mas principalmente, pintando muito.
Mais tarde retornei à EBA para fazer um curso de pintura de retratos com Alan Fontes. Após este curso, queria encontrar um atelier para pintar a figura humana. Ingressei no atelier de Fernando Palma. Mas precisava encontrar meu próprio caminho, minha linguagem, minha identidade. Sentindo necessidade de uma crítica e orientação no meu projeto de pintura, comecei a pensar quem procurar. O primeiro nome que me veio à cabeça foi Mariza Trancoso. Pelo seu conhecimento de arte, sua honestidade ao avaliar e criticar um trabalho, e acima de tudo, pela sua maneira de nos levar a pensar e a refletir sobre o próprio trabalho. Ela era a pessoa que eu precisava naquele ponto. E desde 2011 venho desenvolvendo meu trabalho, sendo orientada por ela. Freqüento seu atelier uma vez por semana. Lá, conversamos sobre arte, exploramos seus livros, ouvimos seus comentários, discutimos e pintamos. Tem sido fundamental para mim esta aproximação.
Que artistas influenciaram seu pensamento?
Aqui em Minas, certamente, Mariza Trancoso, Miguel Gontijo, Leo Brizolla. Entre os grandes mestres da arte há aqueles cujas pinturas me ensinam sobre a técnica, composição, recursos, e expressividade como Goya, Delacroix, Ribera, Munch, Egon Schiele, Bacon, Lucien Freud, e tantos outros. Mas, é difícil dizer, porque à medida que o meu trabalho vai se desenvolvendo e mudando, este foco também muda. Como trabalho a feminilidade e identidade feminina no mundo contemporâneo, a leitura de escritoras feministas norteiam meu pensamento, como Virginia Woolf, De Beauvoir, Susan Sontag, Julia Kristeva, etc. A própria leitura de poetas e romancistas me guiam, e ressalto Emily Dickinson e Clarice Lispector. E consequentemente, as pintoras que trabalham a mesma linha a que me filiei como Kiki Smith, Nancy Spero, Marlene Dumas, Louise Beaugeois e Kukuli.
Como você descreve seu trabalho?
Inicialmente eu pintava apenas em óleo sobre tela. Ainda me encanta o brilho suave, a plasticidade da tinta, as cores, e recursos que o óleo me dá. Mas até aí eu fazia quadros menores de nus femininos. Gradualmente, minhas telas foram ficando maiores e a temática mais introspectiva. Meu trabalho passou a ser muito autobiográfico, eu diria que até confessional. Hoje falo de feminilidade, de sexualidade feminina, da dor, principalmente da dor de se ser mulher, da euforia, êxtase, e fantasias e assim passei a utilizar-me de uma linguagem simbólica. Estas telas necessitam de muito mais isolamento, de um olhar voltado para dentro, para os meus próprios sonhos, medos, anseios e desvarios. Comecei a sentir a necessidade de outra mídia que me possibilitasse trabalhar com mais imediatismo, de modo que pudesse dar vazão à ideia que transborda sem ser estancada pela tinta de secagem e técnica muito demoradas. Adotei a tinta acrílica de modo que ela coadjuvasse no meu intento de deixar fluir para a tela um turbilhão de sentimentos e emoções que vem em ondas. O processo da obra confessional é altamente auto-destruidor, porque ele exige que eu me exponha com as minhas falhas, as minhas loucuras, o meu “feio”. É um constante desconstruir a minha imagem. Como diz Michel Beaujour, o artista confessional é um ser dilacerado. É um mergulho na identidade feminina. A palavra identidade aqui adquire seu duplo sentido, o de identificação na paridade e igualdade do grupo e o de individualização e auto-consciência. Enquanto mergulho nesse mar feminino em que me identifico como mulher, tento emergir com uma subjetividade que ajude a construir o meu eu artístico.
É possível viver só de arte no Brasil?
Possível é, e fica comprovado através dos artistas que conseguem esta façanha. Entretanto a dificuldade é enorme e o número deles, pequeno. A maioria tem que exercer alguma atividade paralela. É necessário acreditar que isso é possível para que se possa reverter um quadro de adversidades. Em Minas Gerais talvez exista uma barreira maior a se transpor que é o próprio caráter do mineiro, moldado com o pensamento de poupar e economizar e não de fruição. Esta mentalidade talvez esteja esboçando um desejo de mudar. Mas ainda é cedo para vermos os efeitos de mudança.
O que você comentaria sobre o estágio da arte contemporânea em Belo Horizonte?
Definitivamente está em ascensão. Quando estudava, ficávamos cercados por estas montanhas que pareciam intransponíveis e nos cerceavam, nos mantinham com olhar voltado para nós mesmos e alheios ao que acontecia no mundo. Poucas pessoas viajavam para o exterior, pouca informação vinda da Europa nos alcançava. Hoje, com o advento do computador e da internet há uma tendência à Globalização. Qualquer pessoa hoje viaja, e tem acesso à tudo o que acontece no outro lado do mundo. Então não poderia ser diferente. Ademais, termos um artista mineiro premiado em São Paulo como destaque da arte contemporânea, Miguel Gontijo, logicamente ajuda a colocar de alguma forma em evidencia a arte mineira. Mesmo assim, ainda percebo muita desinformação a respeito e até desinteresse pela arte contemporânea de Minas. Isso, tenho esperança, vai se modificando exatamente por causa de iniciativas que começam a atrair o público para as nossas bandas, como o Inhotim.
O que você estuda? Como você se atualiza?
Fico muito em casa a pintar, ou a explorar a internet pesquisando galerias de todo o mundo. O Facebook contribuiu para conhecer vários artistas e com eles interagir. Compro livros e estou sempre cercada deles por todos os cômodos da casa. Quando viajo, fixo-me no objetivo de cobrir o máximo de exposições, galerias de artes e museus. Eu chamo estas viagens de imersão. Ver um quadro ou obra de perto é muito diferente de ver a foto no livro ou computador. Nada se compara a sentir o impacto do trabalho exposto, ver com nitidez a pincelada, a superposição de cores e tintas, a matéria da pintura. Ver retrospectivas ou exposições com várias obras do mesmo artista faz uma enorme diferença. Às vezes a foto de um trabalho isolado não parece fazer sentido ou ter uma poética, ou não nos passa nenhum sentimento. Mas, no contexto, vários trabalhos do mesmo artista juntos, vislumbra-se o pensamento do artista, sua lógica, a construção de uma mensagem e a obra adquire outra importância ou dimensão.
Qual o caminho para um artista iniciante ser representado por uma galeria?
Comigo aconteceu como um processo natural, que veio como conseqüência do trabalho levado a sério. Não sou boa no setor de divulgação de meu trabalho. As vezes que expus fui convidada pela galeria ou pela curadoria. Não tenho um conselho a dar no que diz respeito a isto.
Qual sua opinião sobre os salões de arte? Alguma sugestão para aprimorá-los?
Eu vejo que em outros segmentos de arte, existe muito incentivo com concursos televisivos, prêmios de grande valor, e a resposta é que surgem tantas pessoas talentosas para disputar que chega a ser difícil de se escolher um vencedor. Qualquer setor artístico que for instigado a competir e trabalhar para conquistar um prêmio fica mais interessante, mais ousado, e prolifera. O salão de arte para mim é o terreno fértil para que artistas se sintam estimulados a criar com mais sofreguidão e ousarem mais. Conquistar um prêmio significa o coroamento do trabalho do artista. Infelizmente, os salões hoje não tem a mesma repercussão e importância que já tiveram.
O que é necessário para se tornar um ícone em artes plásticas?
Tornar-se um ícone é para poucos. É preciso subverter a ordem, e consequentemente enfrentar no início a rejeição. Porque o que se torna icônico é o que transgride, inova, e parece acima de tudo, absurdo. Então no primeiro momento é rejeitado e apedrejado. Mas não basta chocar. É necessário fazer com que as pessoas se detenham, e fiquem remoendo aquilo que viram ou sentiram. E depois, que queiram incorporar aquele princípio, aquela idéia em seus trabalhos. O ícone tem por força que mudar o rumo da arte. Ele tem que apontar uma nova direção e gerar adeptos.
Que contribuição Inhotim deu para o desenvolvimento da arte no Brasil e em especial em Minas Gerais?
Primeiramente colocou Minas Gerais no mapa. Pessoas esclarecidas na Europa e em todo o mundo sabem da existência do Inhotim e tem curiosidade e vontade de conhecer porque a proposta dele é realmente única. Segundo, está trazendo um número crescente de turistas a Minas e isso potencialmente é benéfico. Terceiro, ele confronta o mineiro e sua mineirice com a arte contemporânea do mundo e com novos conceitos de arte. Além do mais, por ser uma experiência lúdica, ele atrai os jovens instilando um interesse pela arte, coisa que a nossa educação fundamental e acadêmica infelizmente não fazem. A longo prazo, poderá ajudar na formação de futuros artistas e de consumidores de arte. Vai instigá-los a investigar e a desafiar conceitos antigos. Para o artista mineiro, contudo, não significou a abertura de um importante espaço para exposição de seus trabalhos. São muito poucas as obras de artistas mineiros ali. Mas, indiscutivelmente, é um semeador de ideias para o artista local, que pode com mais frequência visitá-lo.
Quais são seus planos para o futuro próximo e distante?
Meus planos são puramente relacionados ao meu próprio desenvolvimento como artista, na busca da minha subjetividade ou até mesmo na construção do meu eu artístico. Em um mundo saturado de imagens, em que somos confrontados sem trégua com o trabalho de outros artistas, ser legítima se torna mais difícil. À medida que mergulho em mim, deparo com a mulher do meu século, não só comigo mesma. Sou todas estas mulheres, minha identidade fica imersa neste mar feminino. Perco-me nele e nele me encontro. Identifico-me com todas elas, solidarizo-me com todas e tento não me afogar. Quero submergir neste mar de idênticos e emergir com toda esta carga, mas paradoxalmente, individual. Só penso em apurar-me. O que virá será meramente conseqüência do meu sucesso ou insucesso neste mergulho.
O Canto do Bode
Série:
Sucubus/Incubus, 2012
Acrílica sobre lona
150cm X 168cm
Série:
Incubus/Sucubus, 2012
Acrílica sobre lona
160cm X 160 cm.
The Double
Série:
Sucubus/Incubus, 2012
160cm X 160cm.
Série:
Sucubus/Incubus, 2012
Acrílica sobre lona
160cm X 160cm.
Pietá: Bending Over Backwards
Série:
Incubus/Sucubus, 2011
Acrílica sobre lona
170cm X 175cm
Songs of Innocence and of Experience, 2011
Acrílica sobre lona
150cm X 150cm
Série:
Songs of Innocence and of Experience, 2011
Acrílica sobre lona
120cm X 180 cm
Série:
Songs of Innocence and Experience, 2011
Acrílica sobre lona
170cm X 150cm
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